Por: Nathália Messina
“A natureza pede socorro!” Assim, o morador Manoel da comunidade São Raimundo, no Médio Juruá, retrata a cena de araçarís — aves típicas da floresta amazônica semelhante a tucanos — bebendo água do aerador de uma caixa d’água.
A imagem sintetiza um cenário alarmante: a seca extrema que aflige a Amazônia em 2024, declarada pela Defesa Civil estadual a pior da história em termos socioeconômicos, conforme matéria do G1. Com o aumento da intensidade e da frequência das estiagens severas, cresce a urgência de discutir os impactos da mudança climática na região e a crise que afeta diretamente o manejo sustentável de recursos naturais, como o pirarucu, um dos pilares da sociobioeconomia no Médio Juruá.
O “novo normal” e a questão da sociobiodiversidade
O ano de 2024 reafirma uma realidade que há tempos vem sendo alertada por especialistas e comunidades amazônicas: a intensificação de eventos climáticos extremos. A seca deste ano vem na esteira de um histórico recente de desastres ambientais e crises de diversas ordens na região. Estiagens prolongadas, enchentes devastadoras, terras caídas, ondas de calor, incêndios florestais e nuvens de fumaça tornaram-se fenômenos cada vez mais comuns no dia a dia do povo nortista.
No Médio Juruá, o estudo “Mudanças Climáticas e seus Impactos na Sociobiodiversidade do Rio Juruá“, desenvolvido por João Vitor Campos-Silva e parceiros, sob coordenação da Sitawi, revela impactos evidentes mesmo em uma área preservada que abrange Unidades de Conservação, como a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Uacari e a Reserva Extrativista (RESEX) Médio Juruá. “Uma das questões bastante presentes no discurso da população local é que a temperatura do dia tem aumentado muito nas últimas décadas. Alguns, inclusive, relatam a sensação de que ‘o sol está se aproximando da terra’, pois se antes era possível trabalhar a manhã toda, agora ninguém mais consegue trabalhar depois das 9 ou 10 da manhã.”, aponta o relatório. Isto tem um impacto direto na qualidade de vida dos ribeirinhos e nos trabalhos das cadeias da sociobiodiversidade.
A baixa profundidade dos rios ou inexistência de água em certos trechos do Juruá, torna os locais inacessíveis, dificultando o transporte de produtos como o pirarucu, peixe símbolo de manejo sustentável na região. As águas que outrora permitiam a navegação fluida, hoje não são mais suficientes nem para passar barcos carregados de gelo até certos lagos, muito menos os barcos carregados com as quotas pesqueiras autorizadas. A logística ficou bastante debilitada, principalmente entre setembro e outubro, mas a esperança é que a enchente chegue como repiquete até o fim deste mês, possibilitando a melhora do manejo de pirarucu, ora com uma certa normalidade, ora de forma limitada.
De acordo com José Gomes, conhecido como Coquinho, Técnico de Produção Florestal na ASPROC – Associação dos Produtores Rurais de Carauari: “Hoje estamos utilizando os meios de transporte menores com capacidade máxima de 20 toneladas. Esses transportes estão conseguindo escoar a produção das comunidades até a sede do município com dificuldade. As embarcações de Carauari até o frigorífico – Manaus e Manacapuru – também estão com dificuldade em deslocamento, mas com todos os desafios, a pesca está sendo realizada com restrição. No mês de setembro foi programada a pesca das comunidades com menores volumes de capturas para podermos utilizar as embarcações menores” afirmou o técnico da ASPROC; e o mesmo vem ocorrendo até o presente momento (18 de outubro), pois o nível do rio subiu muito pouco, complementou ele em uma conversa de atualização.
Para além do pirarucu, outras cadeias de valor da sociobiodiversidade, como a coleta de sementes oleaginosas, também estão em risco. A floresta, conhecida por sua riqueza em produtos não madeireiros, tem sofrido com a degradação causada pela perda de recursos hídricos e, com isso, alterado a sazonalidade e as técnicas de coleta das sementes.
Nas palavras de Manuel Cunha, gestor da RESEX Médio Juruá, em resposta ao comunitário de São Raimundo, os impactos são profundos: “A floresta não oferece mais nada. Esses animais — araçari, tucano — bebem água em oco de paus, em parasitas; são animais que não têm o hábito de descer e ir para a beira do lago para beber. Eles estão se socorrendo como podem [na caixa d’água], porque não há mais água na floresta.”
Esse cenário coloca em risco não apenas as espécies animais, mas também a sobrevivência das comunidades tradicionais que dependem dos recursos naturais para sua economia e modos de vida. A população extrativista enfrenta desafios diários para manter suas atividades, como a coleta de frutos, a pesca e o manejo de pirarucu, em meio a um clima cada vez mais incerto.
A urgência de ações concretas
Diante desse quadro, a necessidade de medidas adaptativas e mitigadoras nunca foi tão urgente. A crise atual reforça o papel de iniciativas de manejo sustentável, que ao longo dos anos têm sido fundamentais para a preservação dos recursos naturais e para a manutenção das cadeias produtivas da sociobiodiversidade. No entanto, sem um esforço conjunto que inclua políticas públicas eficazes para o combate à mudança do clima, o futuro da Amazônia e de suas populações permanece em risco.
A seca de 2024 deixa um recado claro: a Amazônia está cada vez mais vulnerável, e as soluções para esses desafios devem ser integradas e amplas, envolvendo tanto as comunidades locais quanto os governos, as empresas e a sociedade civil.