Os resultados do Diagnóstico de Gênero do Médio Juruá ressaltam as diferenças no uso do tempo entre homens e mulheres, na remuneração pelo trabalho agroextrativista e as consequências da gravidez na adolescência.
Por Camila Duarte Ritter, Nathalia Messina e Clara Machado
As mulheres do Médio Juruá, reunidas em associação, definiram como prioridade, a necessidade de uma pesquisa diagnóstica que avaliasse as desigualdades de gênero históricas na região. Para entender melhor como as mulheres são afetadas pelo machismo estrutural que operou historicamente e continua a operar na realidade rural, a Associação de Mulheres Agroextrativistas do Médio Juruá (ASMAMJ) solicitou apoio para realizar o Diagnóstico de Gênero e Juventude nas Cadeias de Valor do Médio Juruá.
Em maio de 2022, uma equipe de pesquisadoras com a ajuda de seis jovens comunitários realizaram entrevistas com mais de 300 adultos em diferentes comunidades do Médio Juruá. As perguntas dessas entrevistas foram elaboradas a partir de uma série de reuniões com lideranças e moradores do território para contemplar demandas reais a serem avaliadas. Além disso, foram feitas conversas em grupo focais para entender a participação de cada gênero nas cadeias de valor consolidadas na região: seringa, pirarucu, sementes oleaginosas, açaí, pescado e mandioca.
Com os dados coletados e análises realizadas, o diagnóstico foi apresentado para as mulheres do território durante a Assembleia Geral da ASMAMJ, realizada na Comunidade do Roque entre os dias 6 e 8 de março deste ano.
Um resultado de destaque da pesquisa diz a respeito da distribuição do tempo do trabalho “produtivo” e “reprodutivo” entre homens e mulheres. As mulheres dedicam 34% do tempo ao trabalho doméstico e de cuidados familiares (ambos considerados trabalho “reprodutivo”), enquanto apenas 22% do tempo dos homens é direcionado para tais atividades. Além disso, um número significativamente maior de homens participa de reuniões entre comunidades, o que é um indicativo da influência díspar entre gêneros na tomada de decisão no território.
Também é notável a diferença etária no perfil reprodutivo entre homens e mulheres. Enquanto 3% das mulheres tiveram filhos antes dos 14 anos (idade considerada legalmente capaz de haver consentimento) e 55% antes dos 18 anos (maioridade legal), nenhum homem teve filho antes dos 14 anos e 12% teve antes dos 18 anos. Esse dado é alarmante, visto que depois de ter filhos, mulheres estão bem mais sujeitas a interromperem seus estudos e trabalhos remunerados se comparado aos homens, sendo os cuidados com os filhos o principal fator da causa.
Nesse contexto de gravidez precoce predominantemente feminina, associado com o maior tempo de dedicação de mulheres aos trabalhos domésticos e de cuidados, foram feitas algumas perguntas a integrantes da ASMAMJ: “de que forma a associação lida com essa realidade? Que ações e/ou medidas podem ser implementadas para minimizar o impacto da gravidez na adolescência, visto que o cuidado com filhos é um dos fatores apontados como responsáveis por afastar as mulheres do estudo, do mercado de trabalho, bem como das posições de lideranças em contextos sociais?”
A pesquisa contou com a resposta da Raqueline Nery, que é gestora ambiental, assessora da ASMAMJ, atual analista executiva do Fundo Médio Juruá (FMJ) e uma das forças femininas do Território Médio Juruá (TMJ). Raqueline relatou que a maneira de lidar com essa realidade é priorizar o acolhimento dessas mulheres, fazendo com que elas se sintam parte fundamental do processo de lutas e conquistas da ASMAMJ. Também destacou ações no eixo de saúde, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Associação das Parteiras Tradicionais do Amazonas e Secretaria Municipal de Saúde de Carauari, com as quais foram realizadas oficinas de trocas de saberes sobre o uso de plantas medicinais e a oficina de resgate das parteiras tradicionais, onde foram inseridas pautas como a saúde da mulher e prevenção.
Raqueline explica, ainda, que a parceria com a Secretaria Municipal de Saúde de Carauari possibilita a realização de consultas ginecológicas e exames preventivos, porém, de modo pontual em eventos, ou seja, não é uma prática periódica. “Ainda temos muito a avançar. Acredito que poderiam ser inseridas atividades mais voltadas para o autoconhecimento, conhecimento do corpo e prevenção, pois, como os números mostram, ainda há um grande número de gravidez indesejada em jovens da região”, complementa a gestora ambiental.
Outro ponto de destaque no diagnóstico é o recebimento do pagamento das safras por cadeia de valor analisada, cuja destinação ora se faz mais para o homem, ora mais para a família, ora para estes dois. Em nenhuma cadeia de valor a mulher revelou receber mais ou igualmente a renda mediana de ambos, ainda que participe fortemente do trabalho, como no caso da cadeia da andiroba.
Além do mais, as cadeias percebidas como mais rentáveis na região, que são a da Seringa e a do Pirarucu, são as que mulheres menos participam em suas etapas de trabalho.
Nas oficinas de grupo focal, uma narrativa foi replicada mais de uma vez sobre o modo como as mães transferem às filhas jovens os papéis de trabalho doméstico e cuidados dos membros da família, liberando os filhos do sexo masculino a usarem o tempo de maneira mais diversa: seja jogando futebol, estudando ou participando das etapas das cadeias produtivas – esta última atividade nem sempre como uma opção de escolha. Esta condição foi amplamente discutida durante e após a oficina da cadeia da seringa, ocorrida na Comunidade São Raimundo e deixou o alerta de Rosângela Cunha, presidenta da ASMAMJ e moradora desta comunidade: “se não houver a prática de ensinamento às mulheres, fica mais difícil delas participarem e serem reconhecidas como capazes”, reforçando o estereótipo de gênero.
Estereótipos de gênero construídos na cultura machista são aspectos do imaginário social que bloqueiam a autonomia das mulheres em múltiplas dimensões. O fato de os homens protagonizarem majoritariamente os espaços públicos e de tomada de decisão, se relaciona com sua vida social mais ativa, autônoma e diversa, enquanto às mulheres ficam reservados principalmente a vida e o trabalho no espaço privado da casa.
O relatório completo do Diagnóstico de Gênero e Juventude nas Cadeias de Valor do Médio Juruá. está publicado e disponível para leitura. A execução desta pesquisa foi liderada pela Associação de Mulheres Agroextrativistas do Médio Juruá (ASMAMJ) em parceria com o Instituto Juruá e com o apoio do projeto “Cosméticos Sustentáveis da Amazônia”, que é uma parceria entre a Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH e as empresas Symrise e Natura, no âmbito do programa develoPPP do Ministério Federal da Cooperação Econômica e do Desenvolvimento (BMZ).