Comunicação

Comunidades do Baixo Médio Juruá lideram processo de transformação social com o Jogo Oasis 

Durante 10 dias de imersão, representantes de sete comunidades pertencentes à Associação de Moradores Agroextrativistas do Baixo Médio Juruá (AMAB) vivenciaram o Jogo Oasis, uma tecnologia social que mobiliza talentos locais, fortalece vínculos comunitários e transforma sonhos coletivos em ações concretas.

Por Raphael Chicayban

Em uma iniciativa inédita no território, o Instituto Juruá e a AMAB reuniram representantes de sete comunidades (Marapatá, Lago Serrado, Marizal, Santa Cruz, Concórdia, Bacaba e São João) que compõem a associação para participar de uma imersão de 10 dias com o Jogo Oasis — uma metodologia inovadora de transformação social criada pelo Instituto Elos.

A preparação para a atividade foi cuidadosa e envolveu meses de articulação. Desde a Assembleia da AMAB, realizada em março, as comunidades foram  mobilizadas para participarem do jogo e estavam cheias de expectativas e curiosidades sobre como seria a experiência. O clima era de descoberta desde o início — e, para muitos, o que se viveu no Lago do Surara foi muito mais profundo do que o imaginado.

Tabuleiro criado pelos jogadores, com elementos simbólicos do entorno da área, através da primeira atividade da etapa do Olhar no jogo Oasis Juruá – Foto: Raphael Chicayban

A nossa aventura começou antes mesmo de chegarmos na Área Protegida Privada de Base Comunitária do Baixo Médio Juruá; foi ainda no barco, no início de nossa jornada, que os jogadores se reconheceram ou se conheceram. Durante a viagem,  passamos por diversas comunidades, buscando os comunitários participantes para a atividade do Jogo Oasis. Nesse momento, todos que estavam no barco, iam aos poucos se descobrindo, ainda com olhares tímidos, sem saber que aquela experiência seria algo tão transformador e que criaria tantos laços. 

O Oasis é um jogo de mobilização comunitária que movimenta talentos e recursos locais para transformar pessoas e ambientes a partir da realização de sonhos coletivos. Reconhecido por sua capacidade de estimular o desenvolvimento através do protagonismo cidadão, o Oasis habilita comunidades a proporem respostas criativas aos seus desafios, reforçando o espírito de cooperação e ampliando as bases para políticas públicas participativas. Além dos comunitários, o jogo também contou com a participação de representantes do curso de Gestão em Turismo da UEA (Universidade do Estado do Amazonas) e membros do Instituto Juruá.

A atividade teve como objetivo fortalecer o sentimento de pertencimento e identidade coletiva do grupo em relação à Área Protegida Privada Comunitária do Baixo Médio Juruá, por meio de vivências imersivas que uniram afeto, escuta, construção prática e celebração. Ao reconhecer saberes locais, sonhar em conjunto e colocar a mão na massa para transformar o espaço, os comunitários reafirmaram sua autonomia, sua relação com a floresta e sua capacidade de cuidar do presente enquanto projeta o futuro de forma coletiva. A mobilização e o senso de coletividade já apareciam antes mesmo de começar oficialmente o jogo. Na chegada à área protegida, no Lago do Surara, todos que ali estavam, juntos, ajudaram a subir com todos os materiais, alimentos e malas. 

Durante a imersão, os participantes , foram protagonistas em todas as etapas, conduzindo reflexões sobre o território, reconhecendo suas potências e organizando-se de forma colaborativa para a ação. O jogo é dividido em diversas  fases — olhar, afeto, sonho, cuidado, mão na massa, milagre, celebração e re-evolução — que convidam os jogadores a vivenciarem um ciclo completo de transformação a partir da escuta, do acolhimento e da realização conjunta. Durante o processo, foram estimuladas competências como criatividade, empatia, inovação, acolhimento, colaboração, engajamento e coletividade — elementos fundamentais que já estavam presentes nas comunidades, mas que foram fortalecidos ao longo da jornada.

Dinâmicas de grupo durante a etapa do Sonho e Cuidado do Jogo Oasis Juruá-  Foto: Raphael Chicayban

Unidos do Surara: sonhos plantados com os pés na terra e olhos vendados

O nome, Unidos do Surara, escolhido por todos no coletivo, foi resultado de uma criação afetiva e potente, que selou o sentimento de grupo durante a etapa do Afeto. Juntos, entre risos e cantorias, os participantes compuseram uma música original — uma espécie de hino do território — costurada com elementos da vivência, da floresta e do cuidado compartilhado. A canção surgiu como celebração e símbolo de pertencimento, reunindo vozes diversas em uma só batida, marcada pela força da coletividade e pela beleza do lugar que agora reconhecem como casa e causa. Além da canção, foi feito um porta estandarte, com elementos que traduziam o grupo , usando parte dos materiais com os recursos naturais locais, como gravetos, folhas e sementes.

Unidos do Surara desfilando com seu porta estandarte – Foto: Raphael Chicayban 

Durante uma imersão carregada de afeto, pertencimento e floresta, o Unidos do Surara transformou práticas simples em potentes gestos de cuidado, memória e reconstrução. A experiência começou com uma dinâmica de olhos vendados — um exercício de confiança e conexão que revelou muito mais do que a ausência de visão. Ali, palavras como “experimentar”, “segurança” e “cuidado” não foram apenas ditas, mas sentidas no corpo e no silêncio da mata.

O mapeamento das belezas e recursos durante a etapa do Olhar, despertou no grupo a percepção da importância de conservar o território. A diversidade encontrada reforçou a relação entre proteção ambiental e fortalecimento cultural e comunitário. Entre o som do jacu e o vento no igapó, os jogadores mapearam belezas e recursos: sementes, castanheiras, cogumelos, cheiros, rastros de animais, árvores, sementes e frutas. Cada detalhe, cada nome, carregava a identidade viva de um território em pé, diverso, fértil. 

“Nós guarda as florestas para nós mesmos, né? Nós reserva para nós mesmos. Para deixar ninguém matar bicho, deixar derrubar as árvores. Nós estamos lutando por isso. […] Nós guardamos e conhecemos muito isso aqui.” — Evandro Inácio, conhecido como Seu Dira, morador da comunidade Marapatá.

Na dança entre afeto e ação, o grupo revelou seus talentos: gente que planta, pesca, lidera, esculpe, borda, flecha, trabalha com educação, cuida do  lar, incentiva e escuta. Uma rede viva de habilidades locais que se entrelaçam com as histórias de quem constrói esse território dia após dia.

Momento de dança durante a etapa do Afeto do Jogo Oasis Juruá-  Foto: Raphael Chicayban

Da escuta nasceram sonhos: trilhas interpretativas, energia solar, água limpa, estruturas comunitárias e um desejo comum de mostrar a beleza do lugar para o mundo. Sonhos coletivos desenhados, com lápis de cor e maquetes, planejados em roda e depois colocados em prática, com mão na massa e pé no chão.

Criação das maquetes durante a fase do Cuidado do Jogo Oasis Juruá – Foto: Raphael Chicayban 

Durante a fase do Cuidado, os jogadores retornaram às suas comunidades para mobilizar e captar recursos humanos e financeiros , focando nos sonhos coletivos selecionados que consistiam na reforma da casa comunitária, do centro cultural e na criação da primeira trilha interpretativa — passos iniciais para melhorar a infraestrutura da base para a hospedagem e realização de atividades no local, bem como fortalecer a vida em comum, impulsionar o turismo de base comunitária e valorizar os saberes locais.

Durante todo o jogo, os participantes conseguiram criar relações profundas uns com os outros, ouvindo histórias e afetos, trocando vivências e refletindo sobre como essas trocas poderiam ser essenciais para tornar seus sonhos realidade. Esse movimento coletivo revelou uma força recíproca entre lideranças, que assumiram um protagonismo ainda mais forte dentro de suas comunidades.

“Mas quando junta todo mundo para desenvolver um trabalho, é uma sensação diferente. Aqui a gente tá buscando um aprendizado com cada pessoa. Cada um mostrando aquilo que sabe, aquilo que gosta de fazer.[…] Quando você fala ‘nós’, pra mim é muito significante. Tem mais gente ao nosso redor fazendo o mesmo com amor. E se tiver felicidade no que está fazendo, você consegue fazer tudo bem feito.”  — José Alves, conhecido como Silas, morador da comunidade Lago Serrado e  Especialista em Manejo Comunitário no Instituto Juruá.

Durante a etapa do Milagre — nome dado à fase de realização dos projetos — o grupo abriu trilha, construiu, pintou, consertou, organizou mutirões e fechou as noites com jantares coletivos e baldes de açaí. A celebração veio como reconhecimento: do que cada pessoa fez, do que o grupo construiu e de todas as mãos que colaboraram — inclusive as que contribuíram com doações monetárias ou de materiais.

A Re-Evolução ficou como horizonte. Quatro sonhos foram escolhidos para os próximos meses: criar um varadouro no Lago Tambaqui, fortalecer a vigilância comunitária, instalar painel solar com internet e transformar o centro de convivência em um espaço para realização de formações, como cursos, oficinas e iniciativas semelhantes ao próprio jogo Oasis.

A experiência do Jogo Oasis no Lago do Surara não apenas mobilizou pessoas e comunidades em torno de um sonho coletivo — ela também provocou redescobertas íntimas, reconexões com a ancestralidade e transformações pessoais profundas. Cada participante levou para casa mais do que lembranças: carregou consigo uma nova forma de olhar para si, para o outro e para o território.

Criação da trilha interpretativa com a colaboração e trabalho dos jogadores –  Foto: Raphael Chicayban 

Para muitos, o Oasis foi uma travessia simbólica. Um processo de deixar para trás medos, timidez, sobrecarga emocional, para reencontrar a força comunitária e o valor da escuta. Pessoas que antes hesitavam em se expressar passaram a se sentir confiantes para falar em público, compartilhar saberes e se colocar como protagonistas em suas comunidades. O processo de acolhimento, as rodas de conversa, o afeto trocado e os dias intensos de convivência criaram o ambiente necessário para que emergisse coragem, autoestima e pertencimento.

“E com tudo que se passou aqui, também eu aprendi. Não me destacava a falar que nem eu tô falando aqui, né? […] E hoje eu tô aqui, através daqui do jogo Oasis. Fui perdendo a vergonha.” — Antonia Lijanete, moradora da comunidade Concórdia.

Outros participantes relataram que o jogo os ajudou a se reconectar com as próprias origens, revisitando memórias de infância e reconhecendo a potência cultural e espiritual dos espaços compartilhados. A convivência entre comunidades que, embora próximas, raramente têm tempo de se encontrar com profundidade, possibilitou o surgimento de laços mais sólidos, baseados no cuidado, na escuta ativa e na valorização mútua. O território deixou de ser apenas paisagem para se tornar espelho — refletindo histórias de luta, superação, beleza e resistência.

“Foi uma atividade de redescoberta para mim […] de tudo o que eu fui enquanto
menina, de tudo o que eu sou e de algo que eu sei que é propriamente meu. […] A Fernanda que está saindo daqui agora é uma Fernanda que entende quem ela é. — Fernanda Moraes, presidenta da AMAB, Gestora de Área Protegida de Base Comunitária no Instituto Juruá e moradora da comunidade Lago Serrado.

Para os jovens, o jogo despertou um novo olhar sobre a realidade ao redor. Muitos mencionaram que, apesar de estudarem ou viverem próximos da floresta, nunca tinham parado para observar certos detalhes, nem entendido a força das relações comunitárias da forma como sentiram ali. A convivência intergeracional — com crianças, jovens e adultos em um mesmo espaço de troca — ofereceu um terreno fértil para o aprendizado e para o fortalecimento de lideranças emergentes.

“Aqui foi uma experiência única, onde eu construí um sonho juntamente com as pessoas de comunidades ao meu redor, e a gente realizou esse sonho juntos, porque, que nem eu sempre falo, uma pessoa não consegue fazer nada, mas sim, com várias pessoas, sempre dá certo.”
— Dalton Menezes, estudante de Gestão em Turismo pela UEA – polo Carauari

Nas vozes e matas do Surara, nos gestos simples do dia a dia e nas pequenas conquistas de cada atividade, foi se revelando uma pedagogia potente: a de que sonhar juntos é o primeiro passo para transformar realidades. E que a verdadeira riqueza está nas pessoas, na memória viva de seus corpos, e na sabedoria compartilhada entre elas.

Conclusão das atividades na Área Protegida  Comunitária  do Surara – Foto: Raphael Chicayban 

O que se viu no Surara foi mais do que um jogo. Foi um rito de passagem, uma jornada de cura e uma declaração de futuro — aquele que só pode ser construído de forma coletiva. Cada pessoa saiu de lá transformada à sua maneira, mas com algo em comum: a certeza de que o território pulsa mais forte quando é cuidado não somente pelos  olhos, mas pelo coração.

Está gostando do conteúdo? Compartilhe.

plugins premium WordPress