Por Indiara Bessa
Médio Juruá realiza primeira certificação de contadores de pirarucu e fortalece manejo sustentável da espécie
Entre os dias 17 e 20 de agosto, a comunidade Lago Serrado, no município de Carauari (AM), sediou um marco histórico para o território do Médio Juruá: a primeira edição do curso de certificação de contadores de pirarucu na região. A formação reuniu representantes de comunidades das calhas dos rios Juruá e Purus e resultou na habilitação de 17 novos contadores e contadoras, ampliando a capacidade técnica local para o monitoramento desta espécie simbólica da Amazônia.
Com essa certificação, as comunidades fortalecem sua autonomia no manejo participativo, assegurando que as cotas anuais de pesca sejam definidas com base em levantamentos populacionais rigorosos e confiáveis. A iniciativa foi ofertada pelo Instituto Juruá, com apoio técnico do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), instituição referência no país.
Tecnologia social amazônica que se espalha pelo território
A certificação surge como passo natural após anos de capacitações promovidas pelo Instituto Juruá. Para Simelvia Vida, coordenadora de Educação e Fortalecimento Comunitário do Instituto, trata-se de um avanço estratégico:
“Como o Instituto Mamirauá é pioneiro na capacitação, buscamos essa parceria para trazer a tecnologia e nos tornarmos excelência na realização desse curso. A ideia é multiplicar essa metodologia que é tão importante para a sustentabilidade dos estoques.”
Simelvia explica que até então a região contava com apenas nove contadores certificados, o que gerava sobrecarga e aumento de custos logísticos. Com a formação atual:
“Esperamos diminuir o tempo de contagem, reduzir o esforço necessário e preservar os contadores para as etapas seguintes do ciclo de manejo, como a pesca.”
Ela destaca ainda a visão de médio prazo:
“Essa primeira edição foi piloto. Nossa intenção é repetir o curso periodicamente, fortalecer nossa equipe local e espalhar o método com ética e responsabilidade. O importante não é contar mais — é contar o número real que o ambiente apresenta.”
Rigor técnico e segurança no processo de certificação
O processo avaliativo combina teoria, prática acumulada ao longo dos anos e uma etapa técnica conhecida como arrasto, que compara a contagem visual realizada pelo contador com a quantidade real de peixes capturados momentaneamente pela rede. A precisão é fundamental: o índice de erro permitido é de até 30%.
O técnico do Instituto Mamirauá, Ruiter Braga, integrou a equipe responsável pela certificação:
“A contagem de pirarucu é um levantamento populacional que serve de base para o pedido de cotas junto ao Ibama. Precisamos garantir contagens confiáveis, feitas com compromisso e seguindo a metodologia padronizada. Superestimar ou subestimar pode comprometer a sustentabilidade dos estoques.”
Segundo ele, a certificação oferece também mais confiança aos profissionais responsáveis:
“Quando fui certificado, pude finalmente tirar a dúvida: ‘estou contando certo?’ Essa segurança é fundamental. Agora esperamos contadores cada vez mais confiáveis, replicando conhecimento e mantendo resultados dentro do esperado para cada ambiente.”
Nesta primeira edição, as vagas foram distribuídas de forma democrática entre organizações comunitárias, associações, áreas em expansão de acordos de pesca e territórios vizinhos, garantindo que o conhecimento chegue a diferentes regiões da Amazônia.

Participantes realizando prova pratica de contagem de pirarucu as margens do Lago Serrado | foto: Jorge Pimentel
Protagonismo comunitário e avanço da participação feminina
Para moradores e lideranças, receber a certificação no Lago Serrado representa um reconhecimento à organização social do território. A manejadora Fernanda Araújo de Moraes, moradora da comunidade e liderança do movimento, conta que viver essa conquista localmente foi emblemático:
“Viver um curso de certificação de contadores aqui no Lago Serrado, na área do acordo de pesca, para mim, foi um momento mais que mágico. Mostramos que estamos organizados de uma forma a sermos premiados com essa certificação na nossa comunidade. E o mais marcante foi ver mulheres sendo certificadas como contadoras profissionais.”
Fernanda, que atua incentivando a participação feminina em todas as etapas da cadeia do pirarucu, destaca o impacto dessa mobilização:
“A gente ouve muito a frase ‘contagem é uma atividade para homens’, mas jamais aceitaria me calar diante disso. As mulheres têm capacidade, força e conhecimento para participar de qualquer atividade. Hoje elas reconhecem seu valor, têm voz ativa e mostram que são essenciais dentro do território.”

Mulheres exibindo protagonismo durante as atividades do Curso de Certificadores | Foto: Jorge Pimentel
Por que a contagem é decisiva para a cota autorizada pelo Ibama
A contagem de pirarucu é considerada o coração do manejo. Realizada anualmente, ela estima o número de indivíduos de determinados tamanhos presentes nos lagos manejados. Esse dado populacional é a base que o Ibama utiliza para liberar a pesca legal: pela norma vigente, apenas uma porcentagem dos animais adultos detectados pode ser capturada — uma regra de conservação que impede a sobrepesca e assegura a regeneração natural do estoque.
Quando uma contagem superestima o número real de peixes, as cotas podem ser infladas, abrindo risco de declínio populacional. Quando subestima, a comunidade perde renda e esforço de manejo. Por isso, a precisão é estratégica: mais do que contar muitos peixes, é contar com exatidão aquilo que o ambiente realmente comporta. Essa responsabilidade torna o contador um agente fundamental para a sustentabilidade do sistema.
O plano de manejo do pirarucu no Médio Juruá
O manejo participativo do pirarucu é regulamentado por normativas federais e envolve um ciclo de atividades que se repete anualmente. Nele, comunidades monitoram e protegem lagos manejados, realizam a contagem populacional do pirarucu, elaboram relatórios e submetem ao Ibama o pedido de autorização de pesca. O órgão ambiental valida os dados apresentados e define a cota — limitada, proporcional ao estoque e restrita a áreas sob acordo formal de pesca.
No Médio Juruá, esse manejo permitiu a recuperação de populações antes drasticamente reduzidas pela pesca predatória. Hoje, os territórios manejados apresentam indicadores socioambientais positivos: aumento da renda local, maior segurança alimentar, fortalecimento da governança comunitária e recuperação de ambientes aquáticos. O modelo tornou-se referência para outras regiões da Amazônia pela combinação entre saber tradicional, monitoramento contínuo, vigilância comunitária e critérios científicos.

Participantes navegando pelo Lago Serrado | Foto: Jorge Pimentel





