A conservação de quelônios no Médio Juruá tem como protagonistas os próprios moradores das reservas locais
Por Bernardo Oliveira
A história da conservação de quelônios – animais de casco, como tartarugas – no Médio Juruá, AM, é também uma história de luta. Luta de muitos ribeirinhos que enfrentaram “patrões”, que controlavam toda a produção local e exploravam os moradores de comunidades em um esquema de semi-escravidão para isso.
No início, esses patrões ordenavam que comunitários retirassem os ovos dos animais dos ninhos e os reunissem em tabuleiros – tanques onde os animais eram guardados para evitar que a população local pegasse os ovos para se alimentar. Depois, quando adultos, os animais eram comercializados por sua carne.
Nas últimas décadas, depois de muita luta das organizações que se formaram para mudar essa situação e conquistaram a criação das reservas Resex Médio Juruá e RDS Uacari, essa história tomou um rumo muito diferente.
Hoje, os comunitários continuam guardando os ovos para protegê-los de predadores e pessoas mal-intencionadas, mas agora não mais para comercializar a carne e sim para devolver os filhotes de quelônios para os rios e, dessa forma, garantir a segurança alimentar dos moradores das reservas e o crescimento da população de animais de casco.
Seu Bomba, um dos protagonistas na conservação de quelônios na região, que realiza esse trabalho desde a época dos patrões, conta que já chegou ao Médio Juruá com a intenção de conservar a biodiversidade.
“Na época, com os patrões, a gente não conseguia realizar a conservação. A gente não era dono de nada, eles eram os donos. E aí, passamos a participar de reuniões, onde nos incentivavam a chegar a um ponto em que houvesse a conservação. Nos reunimos com as lideranças locais e com muita luta conseguimos a Resex Médio Juruá.”, explica Seu Bomba.
Depois da criação da reserva, as associações locais tiveram força para tirar os tabuleiros das mãos dos patrões e deixá-los sob a guarda dos comunitários. Seu Bomba é uma dessas pessoas e tem seu próprio tabuleiro. “Foi nessa luta que conseguimos chegar onde estamos hoje. Começamos a preservar, no início tínhamos 15 tartarugas neste tabuleiro e em 2021 tivemos 517. Foi um grande passo que a gente deu e de lá pra cá temos tido muito apoio de instituições como o Instituto Juruá”, conta Seu Bomba.
Mas ainda há muito a se fazer. Para Bomba, que passa noites em claro na praia na época da desova protegendo os ninhos e recebe pouquíssimos recursos para isso, um dos maiores problemas que a conservação de quelônios ainda enfrenta é a fiscalização. “A fiscalização é muito pouca e nós estamos tendo muito impacto nos tabuleiros porque não conseguimos dormir de noite. Se dormirmos, levam tudo”, revela.
A conservação de quelônios no Médio Juruá foi celebrada no dia 15 de novembro de 2021 com a soltura de milhares de filhotes nas comunidades Novo Horizonte e Pupuaí, Resex Médio Juruá. O evento, intitulado Gincana Ecológica, foi organizado pelo ICMBio e instituições parceiras e contou com a participação do Instituto Juruá.
Centenas de pessoas de 42 comunidades locais assistiram aos filhotes sendo soltos e se dirigindo da praia até o rio. As crianças presentes foram convidadas a ajudar os animais a chegarem à água e se divertiram aprendendo o valor da conservação da biodiversidade.
Manuel Cunha, gestor da Resex Médio Juruá, conta que os tabuleiros não protegem apenas os quelônios. “Eles cuidam da gaivota, do bacurau, do camaleão, das andorinhas, das marrecas. Cuidam de um ambiente bem grande. O foco são os quelônios, mas eles trazem tudo isso junto também.”
O gestor faz também uma defesa dos protagonistas da conservação de quelônios. “Se os monitores de praia estivessem trabalhando em sua produção normal, na agricultura, na seringa, na coleta de sementes, eles ganhariam muito mais do que a cesta básica que recebem pelo trabalho. Eles fazem porque têm o espírito de conservação, querem ver a espécie preservada e têm um compromisso com a unidade de conservação. E isso alimenta, não economicamente, mas alimenta o espírito. Eles são os guerreiros da biodiversidade no Médio Juruá.”, explica.
Manuel revela que se emociona ao ver os filhotes sendo soltos e chegando à água. “Porque foi a duras penas conseguir a proteção daquelas milhares de vidas ali, e nos sentimos orgulhosos de ter conseguido. E quando você vê aquelas milhares de vidas sendo soltas, você fecha os olhos e diz ‘eu tenho consciência de que essa unidade de conservação está cumprindo com seu papel, preservando seus recursos naturais para as presentes e futuras gerações.”