Neste 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas, refletimos a importância de demarcar o nosso Bem Viver trazendo as diferentes perspectivas de dois povos do Território Médio Juruá.
Por:
Phamela Barbosa, indígena em retomada, educadora socioambiental do Instituto Juruá
Raimundo Silva, Indigenista do CIMI e Articulador local do Instituto Juruá em Itamarati-AM
Uma vida de qualidade e digna precisa de garantias básicas para se manter. Saúde, alimentação, habitação, conhecimentos, são alguns fatores que podemos mencionar e colocar como essenciais para o Bem Viver da humanidade. O mês de abril nos traz como pauta a luta dos povos indígenas, suas resistências, sofrimentos e a busca incansável por sua utopia do Bem Viver, onde todos têm vez e lugar, uma existência para todos os seres vivos, de forma equilibrada e justa, com dignidade para todos.
A discussão em torno do Bem Viver surgiu graças aos movimentos afro e latino-americanos, em sua grande maioria movimentos indígenas, somado ao desencanto com o conceito de DESENVOLVIMENTO, no final da década de 90. A prática do Bem Viver traz como premissa o equilíbrio harmônico na relação de uma pessoa com ela mesma; entre ela e a comunidade; e por fim, entre a pessoa e o planeta com todos os outros seres. Os povos indígenas, há milhares de anos, demonstram uma maestria nesta prática, estabelecendo uma conexão de interdependência com a natureza a partir do respeito profundo nestas relações, rompendo com o habitar colonial que invadiu Abya Yala, hoje conhecido como continente Americano, desde 1492.
O que a história nos diz, e o modo tradicional dos povos originários nos comprova, é que os povos indígenas vivem há milhares de anos nesta terra e sempre souberam conviver com a natureza. Ao longo de milhares de anos, tem uma relação de pertencimento e cuidado que em sua maioria os não indígenas não conseguem sequer compreender, por viverem em um sistema e terem uma cosmovisão completamente diferente das populações indígenas, onde tudo é visto e posto como mercadoria, visando um lucro individual acima do bem comum. Para atestar isso basta pensarmos que há quinhentos anos, antes da invasão pelos portugueses, milhares de pessoas de diversos povos viviam neste território onde hoje é o Brasil, estavam aqui há vários séculos e mantinham a natureza e todos os bens que ela traz para a garantia da vida deles preservada. Hoje, pouco mais de 5 séculos depois da invasão, a natureza em sua forma nativa já é quase extinta em todo o território nacional, sendo a maior parte preservada onde os povos indígenas vivem.
“Território é um galho que nos conecta com a raiz. É relação com o sagrado. O território é nossa morada coletiva, mas também é nossa morada interior. Com o território, a relação não é da terra como matéria: é uma relação ancestral como corpo e espírito. Território é terra, água, vento, pessoa, bicho, planta, chapada, caverna, árvore, roça, mas não só – é tudo o que isso significa nas múltiplas potências das palavras, ao mesmo tempo em que não cabe nelas. Em nossos corpos essa feitura se dá nas pinturas, na língua, na alimentação, nos resguardos, nos afetos, nos modos de aprender a ensinar. Nossos corpos-territórios são lugares férteis de elaborar e guardar o conhecimento. Nós aprendemos mais com a árvore viva do que com um papel morto. Esse é o saber de quem vive e aprende com o território, essa é a ciência do nosso povo”. Conceito de corpo-território por Vicente, Edvaldo e Celia Xakriabá.

Para os povos indígenas a terra é mãe; ela provê o sustento, a casa, o conhecimento, a garantia de nossa existência, mas para fazer tudo isso ela necessita de cuidados e os povos indígenas são os que mais entendem e mantém esse cuidado, pois suas vidas dependem dessa troca de cuidados; sabem que se protegerem a natureza ela continuará garantindo a vida a eles e a todos que puder alcançar.
Foto: acervo do CIMI.
Para que possamos melhor refletir sobre o bem viver das populações indígenas e a importância de manter seu território vivo, vamos conhecer um pouco da realidade de dois povos indígenas que vivem na região do rio Juruá, o povo indígena Deni e o povo indígena Kulina. O Sr. Edson Ferreira é uma das lideranças da aldeia Matatibem, na terra indígena Kulina do rio Uere, município de Carauari-AM. Essa terra ainda não é demarcada e atualmente está em processo de demarcação. “Nós estamos sendo desrespeitados, discriminados em nossa casa que é o nosso território, as pessoas não respeitam, entram e saem como querem, trazendo coisas ruins e levando nossas riquezas. Elas dizem que nosso território não é demarcado então eles podem fazer o que quiser, nós não queremos brigas com ninguém, só queremos que o nosso direito seja respeitado, temos direito ao usufruto exclusivo do nosso território e não está sendo respeitado. Não podemos mais fazer nossos artesanatos, rituais, como antigamente porque os não indígenas estão em nossa terra e se dizem donos, caçam na mata para vender na cidade, colocam armadilhas na mata e nosso povo não consegue ir buscar os materiais que precisamos porque tem medo de levar um tiro nessas armadilhas. Os peixes, caças para nossa alimentação, nossas festas tradicionais estão sumindo da nossa terra porque tão acabando com tudo, tiram o ano todo madeira para vender, fazemos denúncia para a FUNAI pedimos providências para os órgãos competentes, mas não vemos nenhum resultado e a desculpa é que nossa terra não é demarcada, isso é desrespeito a nossa vida. O que vai ser da nossa vida e dos nossos filhos se eles continuarem destruindo nosso território, o que vamos comer, onde vamos morar? Vivemos ameaçados, já teve morte de nossos parentes pelos invasores, a justiça não faz nada, nós não temos força para defender nosso território porque estamos sozinhos, a lei não nos ajuda, a desculpa é que nossa terra não é demarcada. Nós sempre estivemos aqui, essa terra é nossa, precisamos dela para poder viver. Sem a natureza nosso povo não vive, do que adianta existir e não ter a nossa casa? A natureza é nossa casa, a terra é nossa mãe e não estão deixando que nos cuide dela, se nós não cuidar ela vai continuar morrendo e nós também”. Essa é a realidade e o sentimento do povo sem o seu direito à terra, sua casa, respeitado.

O Sr. Vamuna Hava Deni, da aldeia Morada Nova, rio Xeruã, terra indígena Deni, município de Itamarati, nos conta um pouco de sua história. “Quando eu era novo, nós morava longe da cidade, das comunidades, carivá* tava na nossa terra e nós ia para longe com medo, o patrão mandava nós trabalhar tirando solva*, mas ele nunca pagava, nós pegava rancho, sal, munição, pouca coisa e sempre patrão dizia que não tinha saldo. Nós só trabalhava, era muito ruim, eles não deixava nós fazer roça, tinha que comprar farinha do patrão. A vida do Deni era difícil, nós pegava muita doença do branco, não tinha remédio, muitos deni morreram, sarampo matou muito nosso povo. No Rio Xeruã tava acabando os peixes, muito branco com barco grande levava nossos peixes, muito sofrimento aquele tempo. Nós queria nossa terra, aí conseguimos nossa demarcação, 2003 deni demarcou terra, junto com parceiros, CIMI, OPAN e Greenpeace, que trouxe FUNAI para demarcar nossa terra, aí Deni começou a cuidar da nossa terra. Não tem mais branco na nossa terra, organizamos nossas aldeias, fizemos nossa roça, muita fruta para crianças comer, não deixamos mais invasor levar nosso peixe, nossa caça, nossa madeira. Deni pode cuidar da terra, hoje nossa terra tem fartura, peixe voltou, tem caça perto, tem nossos roçados com muitas frutas. Com nossa terra demarcada nosso povo fez organização, criamos nossa associação ASPODEX (Associação do Povo Deni do rio Xeruã) que representa nosso território, temos assembleia todo ano para decidir juntos a vigilância, a organização de cada aldeia, fortalecer nosso povo para não perder nossa terra. Nós temos manejo do pirarucu, nós fizemos manejo para proteger nossos peixes e cuidar dos nossos lagos. Primeiro nós não queria vender o pirarucu, nosso objetivo era proteger para ter na nossa terra para nosso povo, mas depois de alguns anos decidimos fazer despesca, porque agora tem muito peixe e não vamos ficar sem comida, com o manejo temos recurso para nossa assembleia, para conseguir melhorar a estrutura nas aldeias. Antes perdi muitos parentes deni, hoje nossa terra tem saúde, tem equipe de saúde na aldeia, tem posto de saúde, tem escola para deni aprender, já tem professor deni, hoje a vida é muito melhor, nosso povo tem comida, tem casa, faz festa tradicional, joga bola, tem igarapé bom para pescar, tomar banho, carivá* não vem invadir nossa terra, agora nós pode cuidar da nossa terra, não falta comida, rápido nós pega peixe, caça tá perto. Eu lembro antigamente muito sofrimento, agora deni vive bem, nossos filhos pode crescer e viver melhor.” Sob as veias do mesmo rio, terras vizinhas e duas realidades completamente distintas no modo e na qualidade de vida das pessoas por terem ou não o direito ao território, a dignidade na vida dos povos indígenas passa a existir a partir do território.


Foto: Acervo do CIMI.
Neste mês, entre os dias 7 e 11, aconteceu a 21ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), o maior ato de mobilização indígena do Brasil em defesa de seus territórios, e luta por demais direitos. “A Resposta Somos Nós”, campanha global do movimento indígena reforça a essencialidade da demarcação das Terras e dos povos indígenas no enfrentamento à crise climática. Durante o ato, foi lançada a Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) Indígena, que reforça nos debates climáticos, a necessidade de considerar a equidade, a autodeterminação e participação efetiva dos povos indígenas e comunidades tradicionais na implementação da NDC brasileira. Além disso, foi criada uma comissão para a Conferência das Partes (COP-30) que acontecerá ainda neste ano, em Belém-PA, com o intuito de amplificar a visibilidade e a influência dos povos indígenas nas negociações climáticas, o que atravessa diretamente a vida de milhares de parentes em seus territórios.

Uma das principais lutas dos povos indígenas é pela garantia ao seu território, pois todos os demais direitos serão melhores garantidos a partir deste: demarcando o seu Bem Viver. Não existe o bem viver sem a garantia dos territórios, sem a demarcação de terras que sempre foram indígenas, extensões de nossos corpos. Neste Abril indígena reforçamos o que já não dá mais para ignorar: DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS JÁ! NÃO AO MARCO TEMPORAL!
*Glossário:
Cariva = não indígena.
Solva = uma árvore amazônica que se extrai o látex para misturar com o látex da seringueira para coalhar e fazer as pranchas de borracha.
Referências.:
https://apiboficial.org/2025/04/10/apib-lanca-ndc-indigena-e-comissao-internacional-para-cop-30/
https://www.scielo.sa.cr/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2215-24662017000200001