Encontros anuais das organizações locais fortalecem governança territorial, renovam lideranças e tecem o futuro socioambiental do território
Por: Nathália Messina
Sob o dossel verde da Amazônia, onde o Rio Juruá serpenteia as comunidades tradicionais, um movimento poderoso ganha forma por meio das assembleias gerais ordinárias das associações de base comunitária. De novembro de 2024 a abril de 2025, vimos a paisagem, na porção média do rio, dinamizada por entre barcos, botes e canoas em um movimento de convergência dos povos para a comunhão de suas assembleias. Foram, pelo menos, oito desses encontros que marcaram o calendário do Território Médio Juruá, reunindo milhares de moradores em torno de um objetivo comum: manter a floresta viva e garantir que suas vozes sejam ouvidas para a reivindicação de suas demandas. Dentre as assembleias realizadas nos últimos meses, de que temos registro, podemos citar: AMARU (novembro 2024), AAEPPRI (dezembro 2025), CODAEMJ (fevereiro 2025), AIPOKRU (fevereiro 2025), ASMAMJ (março 2025), AMAB (março 2025), ASPROC (abril 2025) e AMECSARA (abril 2025) – ver lista de siglas ao fim. O Instituto Juruá esteve presente e/ou apoiou todas elas.


Barcos da ASPROC (à esquerda) e do Instituto Juruá (à direita) navegando rumo à Assembleia Geral Ordinária (AGO) da ASPROC 2025, na comunidade do Roque, RESEX Médio Juruá. Fotos: barco ASPROC – Nathália Messina; barco Instituto Juruá – José Antônio
As assembleias gerais ordinárias, como as realizadas pela ASPROC – com a presença de 343 associados de 40 comunidades diferentes – e pela CODAEMJ – com 150 cooperados e participantes -, são muito mais que reuniões. São legítimos espaços de diálogos, onde se exerce a cidadania e as bases da democracia. Prestações de contas viram transparência, demandas viram projetos, e conflitos tem chances de se tornarem consensos. Nesses espaços, os associados decidem desde a renovação das diretorias até as diretrizes para a gestão compartilhada do manejo do pirarucu ou das oleaginosas, recursos que sustentam famílias e conservam a sociobiodiversidade.
“A assembleia é uma forma de nos conectarmos com nossos sócios, manter firme nossas parcerias e transparências em nossas atividades; é um momento de diálogo, aprendizado e análise do nosso crescimento, tanto econômico quanto social”, explica Fernanda Moraes, presidente da AMAB, associação responsável pela gestão compartilhada do Acordo de Pesca do Baixo Carauari. Em 2024, a associação celebrou seu 10º aniversário com uma assembleia histórica no Lago Serrado, reforçando seu papel na proteção dos lagos de manejo e na qualidade de vida das comunidades; já em 2025, a assembleia contou com mais de 140 participantes no Bacaba, comunidade que foi apoiada pela Prefeitura de Carauari com a construção de uma casa comunitária para sediar a assembleia e outros encontros comunitários.

Assembleia da AMAB 2025 lota a casa comunitária recém inaugurada do Bacaba. Fotos: Nathália Messina
Juventude e Mulheres: novas perspectivas na gestão comunitária e governança territorial
Se antes as lideranças eram majoritariamente masculinas, hoje as associações estão revelando algumas transformações. Mulheres como Fernanda Moraes, presidenta da AMAB, e Maria das Neves Pacheco (Dona Neves), vice-presidenta da ASPROC, além de ocuparem cargos de direção, articulam projetos verdadeiramente importantes para o empoderamento feminino, a economia comunitária, os laços familiares e sociais, além da floresta de pé.
A ASMAMJ tem um papel primordial na mudança desse paradigma, uma associação feita por mulheres e para as mulheres. Em sua assembleia de 2024, que, como outras, acompanhou o calendário da Semana Internacional da Mulher, a ASMAMJ celebrou 20 anos de nascimento, com o lema “Juntas tecendo nossa história”! Em 2025, a associação conta com 245 associadas de diferentes comunidades do Médio Juruá – desde o Baixo Carauari ao Baixo Itamarati -, reunindo mais de 200 participantes nesta última assembleia, que incluiu atividades de sensibilização e educação sobre suas pautas em prol dos direitos da mulher extrativista.
Jovens, por sua vez, costumam trazer renovação: na AMECSARA os projetos socioambientais tem animado o desponte de lideranças jovens do território, ao mesmo tempo em que também resgatam saberes ancestrais marcados pela cultura local. Já na AIPOKRU, nova associação dos Kulina do Rio Uerê, a sua assembléia de fevereiro elegeu, pela primeira vez, uma chapa de diretoria bastante balanceada, entre jovens, mulheres, homens e anciãos, deixando fixado em estatuto que toda diretoria deve ser composta de forma paritária entre homens e mulheres.
“Nossa diretoria é formada por mulheres e jovens. Isso é muito importante para nossa organização: a força da juventude e a sabedoria das mulheres; assim seremos fortes.”, diz José Paulo Kulina, de 33 anos. O Instituto Juruá, em uma ampla parceria com associações locais e outros parceiros presentes, tem promovido diversas atividades, entre formações, pesquisas, intercâmbios e afins, para engajar essa nova geração em práticas de conservação, ativismo e gestão compartilhada do território.
Além das Assembleias: tecendo redes de governança
O território não se move apenas nos encontros anuais das associações. O Fórum TMJ (Território Médio Juruá), que reúne organizações locais e parceiros como o CNS,o ICMBio e a Natura, é um exemplo de como decisões locais ganham escala.
Em paralelo, Reuniões Setoriais e Reuniões do Conselho das Unidades de Conservação (UCs) – RESEX Médio Juruá e RDS Uacari –, promovidas com frequência por suas associações “mães” das UCs – respectivamente, ASPROC e AMARU – e pelos órgãos gestores – ICMBio e SEMA-AM, respectivamente –, acolhem demandas dos moradores e ajudam na construção de regras e manejo das áreas de uso comum, catalisando pesquisas, projetos e políticas públicas que fazem a diferença para a qualidade de vida nas UCs.
Também merecem destaque as reuniões das cadeias produtivas da sociobiodiversidade — como a do Manejo dos Lagos de Pirarucu (ASPROC) e a das Oleaginosas (AMARU e CODAEMJ) —, que aprofundam estratégias econômicas aliadas à conservação e à vida das famílias manejadoras.
“As cadeias produtivas têm um papel central na governança territorial, porque na maioria das vezes são o produto final de uma gestão realmente popular de seus territórios. Estas cadeias conectam diretamente o modo de vida das populações locais com a proteção do território e as tomadas de decisões acerca de seu uso. Quando as comunidades manejam o pirarucu, coletam óleo de andiroba ou extraem o açaí, elas não estão apenas gerando renda para suas famílias, mas também estão exercendo um protagonismo real na gestão dos recursos naturais. Essas atividades fortalecem o vínculo das pessoas com o território, criam redes de colaboração entre comunidades e instituições, e exigem organização social, transparência e planejamento. Ou seja, elas dão forma prática à governança ajudando a manter o território vivo, produtivo e com o cuidado das próprias populações que ali vivem.”, reflete Eduardo Muhlen, coordenador de Governança Territorial e Sociobioeconomia do Instituto Juruá. Ele, por sua vez, complementa sobre as assembleias das organizações locais: “As assembleias são momentos fundamentais para o território. São momentos de tomada de decisão, exercício do protagonismo local e também da celebração dos avanços conquistados. É nelas que as pessoas se veem, se escutam e tomam decisões coletivas. No Médio Juruá, a realização periódica dessas assembleias tem sido essencial para fortalecer e também renovar lideranças, prestar contas, planejar ações e manter o diálogo vivo entre comunidades e organizações. Já os encontros das cadeias produtivas têm uma força própria: elas reúnem quem está envolvido no manejo e na comercialização dos produtos da floresta e dos rios. Esses momentos permitem troca de experiências, avaliação de resultados, ajustes nos acordos e construção de estratégias comuns. Juntos, assembleias e encontros tecem o tecido social e político que sustenta a governança territorial. Eles garantem que o futuro do território seja desenhado pelas mãos de quem vive nele.”, reflete Eduardo, popularmente conhecido como Duka.
Desafios e Celebrações: Um território que busca se reinventar com a sua própria história
Enquanto a AMECSARA e a ASPROC encerraram seus ciclos assembleares em abril, marcados pela renovação das suas diretorias, a AANE retoma a sua assembleia em junho de 2025 para compor uma nova chapa na Nova Esperança; enquanto que a ASPODEX também se prepara para celebrar a sua próxima assembleia na Terra Indígena Deni do Rio Xeruã. Mesmo associações menores, como a AAEPPRI, têm feito uso da assembléia como mecanismo para unir os associados e validar suas estratégias tanto na criação do Acordo de Pesca de Itamarati – que está prestes a ser homologado no ano corrente –, quanto no fortalecimento da cadeia da borracha, tendo realizado a sua primeira AGO após a criação da associação em dezembro de 2024.
Hoje percebemos no TMJ um forte indicador de governança territorial, promovida pelas organizações de base e seus parceiros. Os números falam por si: mais de 950 membros associados à ASPROC, mais de 950 à AMARU, 436 cooperados à CODAEMJ, 245 na ASMAMJ e dezenas de projetos aprovados coletivamente neste e no último ano, a exemplo do Fundo Médio Juruá (FMJ) e Programa Território Médio Juruá (PTMJ). Em pergunta à Milena Azevedo, da Secretaria do Fórum TMJ e Administrativo da AMARU, sobre os indicativos que demonstram bons resultados de governança no TMJ, ela responde que:
“O maior indicativo de que a governança no Território Médio Juruá tem mostrado bons resultados é, sem dúvida, o fortalecimento da organização social e a mobilização das comunidades locais em torno de objetivos comuns. A grande quantidade de membros associados a diversas organizações, como a ASPROC, AMARU, CODAEMJ e ASMAMJ, demonstra uma crescente conscientização e engajamento da população nas questões que afetam seu território. Além disso, o número significativo de projetos aprovados coletivamente (…), indica que as comunidades estão (…) conseguindo acessar recursos e implementar ações que promovem o desenvolvimento sustentável e a valorização dos recursos naturais da região. Isso reflete uma governança participativa e eficaz, onde os moradores das comunidades têm voz ativa nas decisões que impactam suas vidas. Outro aspecto importante é a capacidade de estabelecer parcerias com diferentes atores, como ONGs, instituições governamentais e setor privado. Esse trabalho colaborativo fortalece a rede de apoio às iniciativas locais e potencializa os resultados positivos. Em resumo, a combinação de organização comunitária, aprovação de projetos coletivos e parcerias estratégicas evidencia uma governança territorial robusta no TMJ, que busca não apenas atender às demandas imediatas da população, mas também construir um futuro mais sustentável e justo para todos”, explica Milena.

Para o Instituto Juruá, apoiar esses espaços que promovem a governança territorial de base comunitária, ao mesmo tempo em que garantem a floresta viva e a qualidade de vida de quem vive sob ela, é investir no único futuro possível para a Amazônia. As assembleias e os encontros comunitários provam que, quando as comunidades protagonizam as ações, a floresta dá frutos.
Enquanto o Médio Juruá se prepara para novos desafios — como da mudança climática, questões fundiárias, a pressão por garimpo ilegal e o avanço do narcotráfico —, uma certeza permanece: as organizações comunitárias seguirão sendo o norte para este território onde pessoas e natureza coexistem em harmonia.
*** Saiba mais sobre as iniciativas do Médio Juruá em: <asproc.org.br>; <amaru-am.com.br>; <codaemj.com.br>; <flordemulateiro.com.br>; <ig @forumtmj> e outras páginas parceiras.
Lista de siglas:
AAEPPRI – Associação Ambiental, Extrativistas, Pescadores E Produtores Rurais De Itamarati
AGO – Assembleia Geral Ordinária
AIPOKRU – Associação Indígena do povo Kulina do rio Uere
AMAB – Associação dos Moradores Agroextrativistas do Baixo-Médio Juruá
AMARU – Associação dos Moradores Agroextrativista da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari
AMECSARA – Associação dos Moradores Extrativistas da Comunidade São Raimundo
ASMAMJ – Associação das Mulheres Agroextrativistas do Médio Juruá
ASPODEX – Associação do Povo Deni do Rio Xeruã
ASPROC – Associação dos Produtores Rurais de Carauari
CNS – Conselho Nacional das Populações Extrativistas
CODAEMJ – Cooperativa Mista de Desenvolvimento Sustentável e Economia Solidária do Médio Juruá
ICMbio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
FMJ – Fundo Médio Juruá
Fórum TMJ – Fórum Território Médio Juruá
PTMJ – Programa Território Médio Juruá
RDS Uacari – Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari
RESEX Médio Juruá – Reserva Extrativista do Médio Juruá
SEMA-AM – Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Amazonas
UC – Unidade de Conservação