Por Renato Rocha
Em agosto de 1979 o jornal Porantim, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário, estampava em uma de suas páginas a lista de 85 nomes de indígenas da etnia Deni mortos em decorrência de um surto de tuberculose que àquela altura assolava as aldeias do rio Xeruã, afluente do rio Juruá. Embora, devido à sua gravidade, a notícia tenha alcançado repercussão nacional, o ocorrido não foi suficiente para alertar o poder público sobre o genocídio em curso. De acordo com Egon Dionísio, missionário responsável pela denúncia, a FUNAI chegou a enviar um médico às aldeias Deni, que diagnosticou algumas “perebas” e distribuiu vitaminas aos indígenas.
Sem dúvida, aquela não era a primeira vez que os povos indígenas do Médio Juruá se deparavam com um grave surto epidemiológico. Infelizmente, também não seria a última. Anos depois, em 1992, os povos Deni e Majiha Kulina voltariam a figurar nos jornais, mas desta vez devido a um surto de sarampo que resultou na morte de 67 pessoas (PEZZUTI, 2009). Segundo reportagem de José Rosha publicada em março daquele ano no jornal manauara A Crítica, “o alarmante número de mortes pelo sarampo coloca em evidência pelo menos dois problemas enfrentados pelos povos indígenas da Amazônia: a violação ao direito à terra e o estado de abandono com a falta de assistência à saúde”. A percepção do jornalista alcançou uma realidade atualmente ignorada pelo Estado brasileiro: a íntima relação entre o bem viver dos povos indígenas e a garantia do direito originário à terra.
Recentemente, em plena pandemia da COVID-19, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) conquistou uma vitória histórica no Supremo Tribunal Federal (STF) por meio da ADPF 709¹, que denunciou atos racistas praticados pela União contra os povos indígenas, como a omissão da FUNAI às constantes invasões aos territórios indígenas e a recusa da SESAI a atender indígenas residentes em contexto urbano ou em terras indígenas não homologadas. A decisão do STF foi favorável ao movimento indígena ao determinar, dentre outros, a criação de barreiras sanitárias nas terras indígenas e a aplicação prioritária de vacinas da COVID-19 em toda a população indígena do Brasil, independente do status jurídico de seus territórios ou localização de suas residências.
Esta decisão garantiu que os povos indígenas do Médio Juruá que ainda não tem seus territórios tradicionais reconhecidos pela União também pudessem se vacinar. No Médio Juruá, as etnias Kanamari e Majiha Kulina ainda aguardam pela demarcação de suas terras. Ainda que os horizontes se mostrem turvos, estes povos se somam à mobilização nacional indígena na luta histórica pelo direito originário à terra.
Em junho deste ano centenas de indígenas representantes de cerca de 45 etnias se reuniram em Brasília no Levante pela Terra. A mobilização buscava marcar a oposição dos povos à aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Projeto de Lei 490/2007. Flagrantemente inconstitucional, o PL 490 representa um grave retrocesso nos direitos dos povos originários ao permitir a abertura das terras indígenas às atividades econômicas predatórias, ferindo o direito destes povos ao usufruto exclusivo de seus territórios. O PL 490 também impulsiona uma ofensiva aos povos indígenas isolados, adota a tese do marco temporal e procedimentos que inviabilizariam a demarcação das terras indígenas.
Durante a sessão da CCJ, que tragicamente aprovou o PL 490, a deputada indígena Joênia Wapichana foi impedida de se pronunciar justamente quando denunciava a ausência de oitiva aos povos indígenas, prevista pela Convenção 169 da OIT, que garante às comunidades tradicionais o direito à Consulta Livre, Prévia e Informada antes de qualquer medida administrativa ou legislativa que os possam afetar.
Ao decidirem não morrer, os povos indígenas recusam o silêncio e já organizam novas mobilizações para resistir ao PL 490 e a outras tantas ofensivas em curso no Congresso Nacional. No Médio Juruá, atentos às mobilizações nacionais, os povos Deni, Kanamari e Majiha Kulina sustentam na base a luta pelos seus direitos originários. Protegem suas terras, alimentam suas crianças, dançam e cantam suas histórias, certos de que aquele genocídio, já denunciado em 1979 e vivenciado em toda sua história, terá um fim.
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Renato Rocha é indigenista pela Operação Amazônia Nativa (OPAN) e ativista pela defesa dos direitos humanos. Ele atua no Médio Juruá desde 2015.