COMUNICAÇÃO

Conservação da fauna terrestre, com Whaldener Endo

Por Clara Machado

Whaldener Endo, mais conhecido como Óleo, é biólogo, doutor em Ecologia e Manejo de Recursos Naturais pela Universidade Norueguesa de Ciências da Vida (NMBU). Atualmente é professor adjunto na Universidade Federal de Roraima. Sua trajetória acadêmica enfoca ecologia e conservação de vertebrados terrestres, incluindo temas como a sustentabilidade da caça de subsistência, conflitos entre humanos e animais e a efetividade do estabelecimento de áreas protegidas para a proteção da biodiversidade. Óleo participou das fases iniciais do Projeto Médio Juruá (PMJ) e do Programa de Monitoramento da Biodiversidade e do Uso de Recursos Naturais (ProBUC), contribuindo para atividades de monitoramento da fauna e levantamento de dados ao longo do rio Juruá. Convidamos o Óleo para conversar sobre sua experiência no médio Juruá e sua trajetória acadêmica que envolve assuntos tão relevantes à conservação da fauna e dos ambientes terrestres.

INSTITUTO JURUÁ. Por favor, conte um pouco da sua trajetória acadêmica e sua carreira?

WHALDENER ENDO. Meu nome é Whaldener Endo, e Óleo é um apelido que carrego por muitos anos, é uma espécie de abreviação do meu nome. Sou natural de São Paulo, onde me formei em Biologia. Eu ingressei na Amazônia trabalhando com turismo, na região do Mamirauá. Retornei ao meio acadêmico com o mestrado no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, e depois fiz doutorado na Noruega. Atualmente sou professor na Universidade Federal de Roraima há quase três anos. Eu sempre tive muito interesse no contato com a natureza, sempre gostei muito de bicho e isso sempre me motivou a seguir a minha carreira. A minha origem é de uma realidade afastada do ambiente natural, eu costumo brincar que eu jogava bola de gude no carpete. Mas isso me motivou a buscar oportunidades de conhecer questões relacionadas à natureza. Academicamente falando, sempre me interessei por Biologia da Conservação e Ecologia, vinculado principalmente a grupos de animais, como mamíferos e aves.

INSTITUTO JURUÁ. Você participou ativamente da criação e das fases iniciais do Projeto Médio Juruá, como foi essa experiência, sobretudo no que diz respeito ao ambiente terrestre, que na época eram as atividades prioritárias?

WHALDENER ENDO. A oportunidade de trabalhar no Juruá veio através do vínculo que eu tinha com o Dr. Carlos Peres. Eu já havia trabalhado no Peru, no Parque Nacional de Manú com ele, e saindo deste projeto eu trabalhei na Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Amazonas, em 2007 com o Virgílio Viana, quando estavam estabelecendo várias unidades de conservação, dentre elas a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari, e esse foi meu primeiro contato com a região. Inclusive, na primeira viagem que fiz para o Juruá, armei uma barraca em uma praia para passar a noite e só depois soube que era um tabuleiro de proteção! Esse foi o primeiro contato, participando do ProBUC (Programa de Monitoramento da Biodiversidade e do Uso de Recursos Naturais), através da Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Amazonas. Em seguida, o Dr. Carlos Peres conseguiu um financiamento da Iniciativa Darwin e fui convidado a compor o Projeto Médio Juruá, desempenhando um papel de gerente de campo, ajudando nas questões relacionadas a atividades iniciais do projeto.

INSTITUTO JURUÁ. Como foi a experiência do ProBUC (Programa de Monitoramento da Biodiversidade e do Uso de Recursos Naturais) no médio Juruá?

WHALDENER ENDO. Quando trabalhei na Secretaria do Meio Ambiente, o programa piloto do ProBUC estava sendo estabelecido, com a intenção de ser replicado posteriormente em outras unidades, isso foi em 2007 e o PMJ começou as atividades no final do mesmo ano, então foram mais ou menos sincronizados. A grande diferença é que o PMJ expandiu para fora das Unidades de Conservação enquanto o ProBUC era mais voltado para as áreas protegidas, e que o PMJ tinha o enfoque de reunir e analisar dados, com atividades acadêmicas mais específicas como projetos de mestrado e doutorado. O ProBUC tinha diferentes frentes de atuação, como o monitoramento da fauna e dos tabuleiros, de outras atividades extrativistas, como também o monitoramento das atividades de embarcações. Tanto o PMJ quanto o ProBUC eram fundamentados na base comunitária, então todos tiveram envolvimento massivo de várias pessoas de diferentes comunidades, e a ideia era proporcionar cada vez mais autonomia para que os comunitários pudessem tocar esses projetos de monitoramento.

INSTITUTO JURUÁ. Por quanto tempo você atuou no médio Juruá?

WHALDENER ENDO. Eu comecei a atuar no médio Juruá em 2007, e morei na região no fim deste ano até 2009, e no ano seguinte iniciei o doutorado na Noruega, então eu visitava o Juruá frequentemente para as atividades de campo. A maior parte deste tempo que morei lá foi a bordo do barco Hiléia, junto com o Almir e outras pessoas. Existem muitas realidades diferentes na região, ao longo do rio, em Carauari, em cada unidade de conservação e Terras Indígenas. Tive a oportunidade de trabalhar no rio Xeruã, nas Terras Indígenas dos Povos Deni e Kanamari e lá é bem diferente, e até mesmo desconhecido, pelos próprios moradores das outras áreas. Então, são diferentes pontos de vista, eu tive muitos aprendizados trabalhando nessa realidade natural e nas interações com as comunidades, cada comunidade tem seu próprio perfil e seus próprios ensinamentos. 

INSTITUTO JURUÁ. De acordo com a sua vivência no médio Juruá, como você avalia as relações de caça e a interação entre animais e as pessoas na região, que é um tema bastante presente nos seus trabalhos?

WHALDENER ENDO. Dentre as diferenças intra-regionais, a mais drástica é a dependência da caça. Por exemplo, dentro das Terras Indígenas, a dependência da caça é muito maior do que nas comunidades ao longo do Juruá. Existem também alguns padrões, por exemplo, quanto mais afastado da beira do Juruá, maior a dependência da caça. Além dessa associação ao rio principal, existe a relação com as atividades econômicas que as comunidades exercem, por exemplo, as comunidades que vivem mais da pesca estão associadas a esse tipo de ambiente, já as que vivem de borracha, murumuru, e outros recursos acabam tendo maior permanência da floresta, influenciando principalmente as atividades de caça oportunista. Em geral, a dependência da caça para as comunidades ao longo do rio Juruá é baixa se comparada com outras regiões da Amazônia. A proporção dos alimentos provenientes da pesca é bem maior do que o consumo proveniente da caça. No Juruá a caça tem essa característica oportunista, e isso tem relação direta com a atividade econômica que a comunidade desempenha.

INSTITUTO JURUÁ. E você já experimentou alguma comida com um preparo tradicional que te chamou atenção no Juruá? E qual é o animal preferido e mais caçado na região?

WHALDENER ENDO. Na convivência com os moradores, acabamos experimentando algumas carnes de caça e, realmente, tem algumas espécies que depois que provamos, entendemos o motivo dela sofrer uma grande pressão de caça. O queixada é uma carne muito apreciada, os quelônios como tracajá, tartaruga, são animais com potencial grande de manejo sustentável para fins comerciais. E tem as diferentes técnicas que o pessoal usa, por exemplo, a mixira, que fazem com queixada e faziam muito com peixe-boi também. Na mixira, a carne é conservada dentro da banha do próprio animal, e isso faz com que a carne dure muito mais tempo. A caça preferida na região e na Amazônia de uma forma geral são os porcos, principalmente o queixada. É uma espécie muito vulnerável, por isso corre o risco de se tornar bem menos abundante, inclusive sofrer extinções locais, desaparecendo em algumas áreas. Os mais caçados são porcos-do-mato, anta, aves de grande porte, como o mutum, já os primatas são pouco caçados porque comê-los é um hábito pouco comum na região.

INSTITUTO JURUÁ. Como o manejo de base comunitária da fauna poderia contribuir para a conservação da biodiversidade? Quais os desafios que essas atividades enfrentam hoje no Brasil e as perspectivas para o futuro?

WHALDENER ENDO. Diversos estudos mostram que quanto maior o envolvimento das comunidades locais nas várias etapas da elaboração de um plano de manejo, maior é a probabilidade de sucesso da proposta. O envolvimento que tradicionalmente estava mais relacionado à assistência em campo para coleta de dados, hoje já se sabe que não se pode restringir a isso. É uma questão chave envolver as populações locais desde a identificação dos indicadores que serão utilizados, os recursos que serão manejados, até as etapas posteriores, como a avaliação, para que o plano seja viável. Outra questão importante é que propostas de manejo de recursos naturais precisam enfrentar muitos fatores que vão de encontro ao que se deseja atingir, então é importante ter fortes componentes que reforcem a proposta. Quanto maior o engajamento comunitário, maior a probabilidade de sucesso, uma parcela da comunidade que não adere pode causar um impacto tão negativo que inviabiliza toda a proposta. Outro desafio é que ter informações confiáveis demanda muito esforço. É preciso um alto investimento de tempo e recursos para ter boas estimativas, ainda que novas tecnologias e análises estejam contribuindo para superar esse gargalo. Por exemplo, estimativas de densidade populacional demandam um esforço de vários dias de campo, muitos quilômetros de censo, que eram justamente os trabalhos do ProBUC e PMJ. Os animais de médio e grande porte são importantes indicadores de saúde ambiental de áreas naturais, pois são os primeiros membros da biodiversidade a irem embora, então é necessário incluir esses grupos, até porque além de toda a importância ecológica, são também a base de sustento para muitas famílias.

INSTITUTO JURUÁ. Explique, por favor, como é a relação de caça de subsistência e comercial em termos legais? E, além do manejo, existem outras alternativas para reduzir a pressão de caça que esses animais sofrem? 

WHALDENER ENDO. A caça de subsistência é protegida por lei no Brasil, caçar para matar a fome não é crime, já a caça comercial de animais silvestres não é permitida. O que acontece muitas vezes é o julgamento arbitrário dos fiscais quando se deparam com a situação de pessoas levando uma caça. Para além do manejo de fauna, uma das propostas mencionadas é a geração de fontes alternativas de recursos, então se forem proporcionadas alternativas financeiras para o sustento de famílias que vivem da caça, muitas vezes o caçador troca de atividade. A comercialização de caça não é muito rentável, então com uma renda alternativa há a possibilidade dos caçadores mudarem de atividade. Existem questões culturais envolvidas também, e nesse caso o trabalho é maior e exige a atuação da força da lei através dos órgãos de fiscalização para minimizar esses problemas. O futuro pode ser bastante promissor no sentido das tecnologias, por exemplo, há iniciativas de monitoramento de populações de elefantes através de transmissores, atrelando isso a programas de benefícios, de modo que as populações locais que auxiliam a manter esses elefantes são beneficiadas com uma fonte de renda a medida que a população dos elefantes se mantenha protegida.

INSTITUTO JURUÁ. Essas fontes alternativas de renda, por mais que contribuam para reduzir a comercialização da caça, não poderiam gerar mudanças nos hábitos alimentares culturalmente estabelecidos, como a compra de carnes industrializadas? Como você percebe esse processo de transição alimentar?

WHALDENER ENDO. Uma percepção que eu tenho é a de que há uma relação entre os benefícios governamentais, como o Bolsa Família e Bolsa Floresta, e o vínculo com os centros urbanos, porque é preciso ir com frequência para a cidade sacar o benefício, e aumentando essas idas e vindas, aumentam também o consumo de alimentos que vem da cidade. Em relação à distância, por exemplo as comunidades do rio Xeruã que são mais afastadas, a frequência de contato com a cidade diminui bastante e a dependência dos recursos locais aumenta e os produtos da cidade são menos consumidos. Muitas vezes as gerações mais novas vão perdendo um pouco desse contato com a natureza, isso pode ser negativo em alguns aspectos e positivo em outros. Por exemplo a pesca do peixe-boi, que é praticamente uma arte, a arte da pesca do peixe-boi. Por ser um animal extremamente discreto, o pescador precisa saber ler as pistas da natureza, como o capim está mastigado, prever onde o peixe-boi vai boiar, e isso é um conhecimento que vai se perdendo, mas que no fim das contas auxilia a diminuir a pressão da pesca sobre as populações de peixe-boi. Então, essas mudanças culturais podem influenciar negativamente, mas muitas vezes também de maneira positiva. 

INSTITUTO JURUÁ. De uma forma mais abrangente, a respeito da relação entre pessoas e animais e seus conflitos inerentes, o que a ciência e os tomadores de decisão podem aprender com populações indígenas, ribeirinhas e outras populações tradicionais no Brasil?

WHALDENER ENDO. Quando você tem a oportunidade de conviver com uma população tradicional, você percebe que existem hábitos que são conscientes ou até inconscientes que favorecem a sustentabilidade das atividades extrativistas. Na maior parte das comunidades tradicionais, você sai da casa e em cem metros já está em uma mata secundária ou primária, e isso não é visto em comunidades que moram na Amazônia mas que trazem culturas de fora, a cultura da monocultura. Então, esses hábitos estão no dia-a-dia dos moradores e facilitam a sustentabilidade no uso dos recursos, alguns deles já vem sendo perdidos em algumas populações como o hábito de se deslocar de uma área para a outra, que era comum em povos indígenas, quando a mudança para outra área acontecia conforme a escassez de algum recurso, permitindo a recomposição da área. Esses hábitos já não são vistos com tanta frequência na Amazônia, mas outros hábitos tradicionais permanecem e são eles que favorecem a sustentabilidade do agroextrativismo.

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