COMUNICAÇÃO

Expedição Emilie Snethlage: mulheres ornitólogas no rio Juruá

Por Glaucia Del‐Rio

A coleção de aves do Museu de Ciência Natural da Universidade Estadual da Louisiana (LSU) é uma das mais importantes do mundo quando se trata de aves da região Neotropical (América do Sul e América Central). Sabendo disso, pelos idos de 2014, fiz todos os esforços possíveis para me tornar uma doutoranda na famosa instituição. Consegui, e desde lá tenho aprendido muito e crescido como ornitóloga (bióloga especialista em aves). Eu não poderia estar mais grata. No entanto, também não poderia deixar de notar alguns padrões que me incomodariam.

Nas paredes da coleção de aves estão as fotos de todos os ex-alunos da ornitologia da LSU, 85% deles, homens. Muitos deles são grandes ornitólogos, curadores dos melhores museus do mundo, pessoas nas quais me inspiro… mas, de fato, gostaria de ver mais mulheres representadas naquelas paredes. Conheço muitas mulheres apaixonadas por aves e cientistas de ponta, e então comecei a refletir: por que não há mais mulheres no “hall da fama” da ornitologia Neotropical? E o mais importante, o que eu poderia fazer para trazer um pouco mais de equilíbrio de gênero para a ornitologia? E uma ideia surgiu… uma expedição só de mulheres. 

Até então eu nunca tinha participado ou ouvido falar de uma expedição feita apenas por mulheres ornitólogas. Mas o que é uma expedição? Uma expedição é uma grande viagem, geralmente para um local de difícil acesso, pouco estudado pela ciência, em que o principal objetivo é descrever e catalogar a fauna e/ou flora local. Essas viagens geralmente exigem muito esforço e comprometimento físico. Uma equipe de especialistas trabalhando 16 horas por dia, acampando, sem acesso a eletricidade, banheiro, água encanada, e desbravando matas em locais remotos. A nossa expedição seria uma homenagem a uma mulher cuja vida era fazer expedições científicas sozinha, a pé, e de saias, há 120 anos, a doutora Emilie Snethlage.

Snethlage era uma ornitóloga alemã que veio trabalhar no Brasil para conhecer as aves da Amazônia Brasileira. Ela descreveu mais de 40 táxons de aves e foi a primeira mulher diretora de uma instituição científica na América Latina, o Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém. De todos os grandes rios Amazônicos, o único que Snethlage não conheceu, foi o rio Juruá. Localizado no Oeste da Amazônia, o rio Juruá nasce no Peru, atravessa o Acre e entra no Estado do Amazonas até encontrar o rio Solimões. Havia poucas publicações relatando quais eram as aves do rio Juruá, então o nosso destino foi definido, iríamos para o Médio Juruá.

Em agosto de 2019, uma equipe formada por oito biólogas e uma documentarista se reuniu no ponto de partida, o município de Carauari. Nosso time tinha doutorandas, mestrandas e alunas de graduação especialistas em aves representando a LSU, a Universidade de São Paulo, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e a Universidade Federal do Pernambuco. Mas, uma equipe tão diversa não poderia estar completa sem os nossos guias locais, Almir Rogério Nascimento, Ana Lucia Teixeira da Silva, e Josué Campello Cavalcante. A bordo de um barco, que serviria de acampamento e laboratório, navegamos pelo Juruá ao longo de um mês. No percurso passamos pelas comunidades Gume do Facão, Bauana, Chué, Ouro Preto, Chibauá.

Sim, as aves do Juruá são espetaculares, mas o que mais nos surpreendeu foram as pessoas daquele rio. As comunidades são vibrantes, acolhedoras e, sobretudo, vivem em paz com a natureza. Pudemos conviver um pouco com as crianças, e aprender com que nome eles chamam cada ave. Vimos jovens engajados em proteger os ovos de tartaruga cuidadosamente depositados nos bancos de areia. E felizmente não ouvimos o ronco da serra elétrica, muito comum em outras áreas da Amazônia. Com sua filosofia sustentável e políticas ambientais, os moradores locais nos ensinaram mais do que poderíamos aprender em anos de estudo acadêmico. E aqui deixo o nosso agradecimento especial ao trabalho primoroso a ao acolhimento que recebemos dos líderes comunitários e dos administradores da RESEX do Médio Juruá e da RDS Uacari.

Nas matas frondosas destas áreas protegidas, registramos 429 espécies de aves de 68 famílias diferentes, e ainda fizemos importantes descobertas. Há muito se sabe que espécies proximamente relacionadas se substituem em lados opostos de grandes rios Amazônicos. Isso significa que na margem esquerda de um rio você pode encontrar a espécie A, mas na margem direita do mesmo rio você encontrará a espécie B. Esse fenômeno ainda não tinha sido registrado no médio Juruá. Isso porque o Juruá é um rio relativamente estreito, e muito dinâmico. Na nossa viagem documentamos essa substituição em quatro grupos de aves. O artigo com mais detalhes da nossa descoberta foi publicado em janeiro de 2021 no Journal of Ornithology.

Dentre todos os resultados da Expedição Emilie Snethlage, não posso deixar de mencionar o maior deles, o seu legado. Onde quer que mencionássemos a viagem, podíamos sentir a torcida e o orgulho de mulheres e garotas de todas as idades. Recentemente, vi em uma rede social, uma publicação sobre uma expedição só de mulheres Colombianas! Espero que nossa viagem tenha servido de inspiração para que mulheres sempre saibam que podem e devem ocupar os espaços que querem ocupar, e que não há limites para nossas trajetórias, assim como nos mostrou a doutora Emilie Snethlage. 

Glaucia Del-Rei é ornitóloga, doutora em Sistemática, Ecologia e Evolução pela Universidade Estadual da Louisiana, onde dedicou-se à especiação, arquitetura genômica e filogeografia comparada de aves amazônicas.

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