Comunicação

O conhecimento feminino sobre a biodiversidade comestível

Por Clara Machado

“Quem somos” e “o que conhecemos” são conceitos tão intrincados que podem se tornar indistinguíveis. Afinal, nós formamos o nosso conhecimento sobre o mundo a partir das experiências que vivenciamos. E as nossas vivências são determinadas pelo nosso gênero, faixa etária, território, cor da pele e muitos outros fatores que nos constituem. Nesse sentido, me interessei em pesquisar o universo da alimentação e das plantas de comer na Amazônia, e encontrei diferenças muito claras no que os homens e mulheres conhecem sobre esse universo. E as consequências dessas diferentes formas de saber são mais complexas do que eu imaginava.

No rio Purus, onde tive o prazer de trabalhar, a divisão sexual do trabalho é semelhante a outros rios na Amazônia, onde os homens realizam as tarefas remuneradas, como o roçado, o extrativismo e a pesca, e as mulheres se dedicam ao cuidado da casa e das crianças, que, como em qualquer outro lugar, é um trabalho não remunerado. Entrevistando as mulheres, cheguei a uma lista de plantas conhecidas por elas que inclui as espécies do roçado – comida do dia-a-dia como a mandioca, o jerimum e a banana – e as frutíferas do quintal da comunidade, que as crianças amam comer. A lista dos homens, por sua vez, costumava ser maior porque, junto a essas, apareciam também as plantas silvestres – aquele araçá da mata que só os pescadores têm acesso, ou aquela fruta da terra firme que os caçadores encontram no caminho. As árvores da floresta estavam um pouco de fora das listas femininas, e foram incontáveis as vezes quando eu mencionava que havia experimentado um fruto da mata e escutava uma mulher lamentar “poxa, nem lembrava dessa fruta! A última vez que eu comi isso faz muitos anos, porque nunca mais entrei na mata!” Os resultados dessas entrevistas foram publicados na Revista Rodriguésia, em 2020.

Eu, como apreciadora das plantas de comer e muito interessada no fortalecimento das cadeias de valor das espécies nativas da Amazônia, me perguntava… se nem as mulheres das comunidades estão tendo acesso a essas plantas, quem dirá o mercado, a cidade, o país. As mulheres, em contrapartida, são as grandes detentoras do conhecimento sobre as inúmeras formas tradicionais de preparação dos alimentos, porque a elas foi designada a função da cozinha. Portanto, segurança alimentar é assunto de mulher, e se as mulheres são responsabilizadas pela alimentação familiar, é fundamental que sejam incluídas no conhecimento dos frutos silvestres, para que possam incorporá-las na dieta da família, proporcionar diversificação alimentar, valorizar a biodiversidade e a cultura alimentar ribeirinha.

O papel das mulheres de cuidadoras da família, das hortas, dos sítios e roçados, que contribui significativamente para a diversificação alimentar das famílias, por vezes é desvalorizado em relação ao trabalho remunerado desenvolvido pelos homens, que frequentam as florestas. Nesse sentido, reflito sobre a fundamental importância de proporcionar às mulheres acesso a informações em iguais condições que os homens em momentos de cursos e capacitações nas comunidades, ampliando o poder de decisão das mulheres no que diz respeito à alimentação familiar, ao uso da biodiversidade, à reda, e à aquisição do conhecimento sobre o mundo.

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