Comunicação

Sobre a meritocracia

Por João Vitor Campos-Silva

Seu Gracias é o maior pescador de pirarucu da região. Sua veia naturalista é grandiosa como as grandes cheias que inundam toda a terra que se pode ver. Seu sonho? Era ser biólogo, ora vejam vocês…

Em um dia chuvoso ele me desabafa dentro do nosso barco: “Poxa JB… você é inteligente né?! Só pode ser muito inteligente quem faz faculdade e depois esses estudo que faz virá dotô… Queria muito ter nascido inteligente pra ser biólogo também…”

Antes de lhe responder, uma tristeza aguda tomou meu corpo, fruto de uma lembrança escondida nos recônditos de minha mente. Vou explicar brevemente: Ulisses era o garoto mais inteligente do meu colégio. E um de meus melhores amigos. Compartilhávamos dentre tantas coisas, o sonho de ser biólogo. Ulisses era brilhante e incomparável, não consigo me lembrar sequer uma nota sua que não estivesse entre 9 e 10. Já eu, nunca me afastei da média, nem para baixo nem para cima. Todas as notas altas que tive não vieram sem as longas horas de bunda na cadeira. Mas havia outra diferença entre nós, que nunca foi notada por ser absolutamente desprezível, mas que o tempo fez ganhar força a ponto de mudar substancialmente nossos rumos: a mãe de Ulisses era a faxineira da escola, enquanto a minha era uma comerciante com condições financeiras mais altas. 

O fato é que Ulisses continuou na mesma (e precarizada) escola, enquanto que meus pais (com muito suor) me mandaram para uma das melhores escolas da região. Na época não haviam políticas sociais que pudessem fazer o menino deslanchar nos estudos, e com 11 anos Ulisses se tornou um pintor de paredes, profissão que exerce com muita dignidade e distinção até hoje. O sonho de ser biólogo foi deixado para trás. 

Ulisses era intelectualmente muito superior a mim. Não há como comparar. Mas ele não teve a sorte que tive de nascer em uma família com mais condições. Não quero em momento algum reduzir ou desconsiderar os grandes esforços que fiz até hoje para estar aqui. Mas de fato, os calos nas mãos de meus pais me abriram muito mais portas que minha parca inteligência. Lembrar do Ulisses me faz brotar uma imensurável valentia para lutar nesse mundo para que os Gracias desse país tenham mais oportunidades e deixem de usar o lenitivo da inteligência para encobrir a brutal desigualdade que destroça seus sonhos. 

Olhando nos olhos do Gracias, olhos que almejam a inteligência (que eu nunca tive) para se tornar um biólogo, findei a conversa abrindo uma lata de cerveja e brindando: “Que nada Gracias, queria eu ser inteligente como o senhor para saber onde jogar o arpão e acertar o lombo de um pirarucu, garantindo a broca da minha família. Tu é doido!”

Está gostando do conteúdo? Compartilhe.

plugins premium WordPress