Por Daniela França
Sou cientista, consultora ambiental, divulgadora científica, ativista e mãe. Ganhei este espaço para falar sobre maternidade e ciência num país em que o mesmo homem que bate com uma mão, com a outra oferece flores no Mês da Mulher. Talvez não tenha ganhado o espaço, mas conquistado, pois tive coragem de expor ideias como as que trago aqui, nas redes sociais e em outros espaços de discussão há algum tempo. Nenhuma ideia nova, pois a luta feminista está aí há mais de um século. Muitas colegas não enfrentam esse medo de falar e se expor por medo de terem suas carreiras boicotadas ou por já saberem que a luta pelo direito das mulheres sempre foi e ainda é taxada de “frescura, falta de sexo”. Luta mesmo, pois ainda hoje mulheres adoecem ou são mortas, vítimas do sistema que as apedreja, pisoteia. Se acha que estou exagerando, é só lembrar quantas foram pisoteadas ao querer sair de casa para trabalhar, ter direito à guarda dos filhos, votar, estudar ou só… não mais apanhar do parceiro. Para não conquistarem a própria independência, mulheres historicamente são arrancadas de si mesmas e mortas, muitas vezes por aqueles que dizem amá-las.
Foi há menos de cinco anos, após meu segundo parto, que percebi que o fato de os meus colegas, homens e mulheres, me chamarem de “Mulher Maravilha” era, na verdade, a forma como a sociedade havia encontrado para exaltar mulheres – a maioria mães – que resistiam mais tempo sem desabar, sem sucumbir, sem desistir, diante do pisoteio que o patriarcado impõe desde que nos entendem meninas. Foi na pandemia que os chutes ficaram ainda mais fortes e passaram a doer mais, como se acertassem o meio da cara. Sim, somos pisoteadas. Lembrando que, apesar de ter origem humilde, ainda falo de cima do meu privilégio de mulher branca, cis, não portando deficiências e fazendo parte de uma ínfima parcela da população brasileira que possui um título de doutorado. Se sou pisoteada, existem mulheres sendo pisoteadas com muito mais força, e é preciso falar disso. Mesmo assim, em muitos momentos, a tal mulher maravilha que mora em algum lugar aqui, dentro de mim, pensou em desistir, e não foi uma única vez.
Desistir, desistir, desistir, desistir…
A palavra que ecoa durante a vida e a carreira daquelas que escolheram ser cientistas, uma profissão que, segundo o estereótipo injetado pelo sistema, não cabe a seres delicados, emotivos, maternais… maternais! A nós cabe o cuidado, não a ação; o acolhimento, não a assertividade; a emoção, não a precisão. Às mães cientistas, cabem olhares reprovadores em ambientes onde engravidar parece ser sinônimo de ter cometido o pecado mais grave aos olhos de deus (que, por sinal, não é deusa): um suicídio profissional. É incomum uma mulher escolher ser mãe antes de atingir o topo da carreira porque os costumes predatórios de produção a qualquer custo da academia devoram quem não segue o padrão imposto por Eles. À mulher é delegado o cuidado. Quanto menos posses ela possui, mais trabalho doméstico precisa realizar, mais cuidados prestar. Enquanto isso, o homem pai, também cientista ou trabalhador qualquer, entende que é dela o dever de cuidar de casa, criança(s), idosos, doentes, enquanto ele publica seus artigos, frequenta seus congressos, participa das suas lives, ganha seus prêmios e recompensas. É como se o casamento fosse uma fábrica e o marido fosse o dono da fábrica, que enriquece às custas do trabalho da mulher/mãe, a operária que trabalha para enriquecer o patrão. E aí me vem à cabeça uma frase que possui muitas variantes por aí: “por trás de toda mulher guerreira existe um homem que negligencia a família” ou “por trás de uma mãe cientista esgotada, há um pai com Prêmio Nobel”.
Ainda hoje o assunto que trago aqui é deslegitimado. Talvez até mesmo de forma inconsciente fazem as mulheres acreditarem que devem escolher a carreira ou a maternidade como se não fosse permitido ter os dois, pois “quem pariu, mantém e embala!”. Afinal, mulheres são seres partenogenéticos que procriam sozinhos. Pois bem, queridos leitores, minhas palavras parecem bravas e revanchistas, mas é apenas exaustão. Na verdade, meu desejo neste Mês da Mulher de 2021 – quando uma pandemia escracha ainda mais as desigualdades sociais, raciais e de gênero existentes no país – é para que troquem suas flores por responsabilidade! A ciência deve ser diversa e toda a sociedade é responsável pelas nossas crianças, não apenas a mãe. Ao contrário do que a maioria pensa, não é a maternidade que traz impactos negativos às carreiras das cientistas, mas a falta de ações e políticas públicas que gerem oportunidades diversas para cidadãos diversos e a nossa dificuldade em reconhecer nossas responsabilidades. A ciência é colaborativa e criar filhos é uma ciência, minha gente! Tome suas flores, aqui!
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Daniella Pereira Fagundes de França ou só Dani Moojeni, é bióloga, doutora em Zoologia e realiza pós-doutorado no laboratório de Herpetologia do Museu de Zoologia da USP. Atua como divulgadora científica e educadora ambiental pela iniciativa @herpetosegundoherpetologas. É sócia diretora na BioRevita Soluções Ambientais e embaixadora do projeto @parentinscience pela causa da maternidade/paternidade na ciência. Sempre diz que é professora por formação, paixão e opção e costuma dizer que a produção mais importante na sua carreira são seus filhotes Ernesto e Paulinha.